Auto-retratos com faca, 2000













Auto-retratos com faca, 2000
Impressão RC a partir de negativos 35mm, preto e branco
40,5x30cm


EXPOSIÇÃO 
Integrada no projeto coletivo Galeria D. Ivone, 2000.



Matadouro Municipal de Caldas da Rainha.


Texto catálogo Galeria D. Ivone – Caldas da Rainha Arte Contemporânea.


Agora, quando vemos a fotografia retratar a própria fotógrafa, perguntamos se haverá aqui um último grito do retratado. E perguntamos se o artista será ainda o exorbitante para quem a faca é o melhor remédio.

Mas este narciso tornado arlequim é um fogo de artifício, uma surpresa calculada. Na verdade, uma fotografia não é uma fotocópia, é uma tatuagem naïf ou, de outro ponto de vista, uma pequena narrativa a duas cores.

A ideia de que a fotografia é uma janela para o mundo deve ser retocada: a fotografia é uma janela em que o interior da casa se reflecte ao mesmo tempo que o seu exterior. Não é um vidro, é um ecrã. É um espectáculo de luzes e de sombras.

Com gestos medidos, o sujeito da fotografia desdobra-se de modo a tornar-se o seu próprio objecto (e o espectador, mesmo que não conheça a artista, “sabe” que a figura feminina retratada é a da autora do retrato), por virtude do olhar que gela a lâmina como a medusa deste tempo, daquele tempo, em que a luz, ao tornar-se certa, dispara. Fotografia, isto é: dis-parar o instante.

A câmara ganha vida própria, a fotógrafa afasta-se e fica à mercê da sua faca, do gume do seu desejo.

É quando a câmara diz: deste instante te suspendes, ficas aqui encantada.

E a fotógrafa diz: eu sou outra, a minha cúmplice sou eu. E acrescenta, noutro tom: eu brinco com o fogo e o gelo do olhar.

A faca soberana talha uma floresta de sombras, e o caminho abre-se à nossa frente. O tempo corre, o futuro faz sentido com o passado, o presente é cada vez mais vasto, mais fundo. Sabemos que é necessário confiar no impulso com que saltamos em cada instante. A velocidade máxima toca na imobilidade, e fixa-se.

Assim, o laboratório não fecha toda a noite para os que têm urgência na revelação. O mistério sente-se vibrar no silêncio e não se pedem explicações, nem são precisas, quando o corpo se oferece à sua imprevisível metamorfose.

Jogo de abismos. A câmara dispara sobre uma fotógrafa que a si mesma se degola. Mas nós, com ela, observamos instrumentos do renascimento: uma câmara escura, uma lâmina clara, papel e tinta.

Fernando Cabral Martins